Muitas das plantas medicinais são cultivadas nos seus
próprios quintais. FOTO: Antonio Rodrigues
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Crato. Pouco mais
de 8Km da sede deste Município, na encosta da Chapada do Araripe, fica o Sítio
Chico Gomes, nome que homenageia o primeiro prefeito da cidade. Por lá, correm
cinco nascentes e três delas são habitat do Soldadinho-do-Araripe, ave ameaçada
de extinção. A comunidade também se notabilizou por manter uma importante
característica: o saber popular das meizinheiras. São três marias, cada uma com
sua trajetória e maneira de fazer os remédios caseiros, mas que se uniram para
preservar a fitoterapia aliada com a diversidade da flora local.
A
medicina popular em Chico Gomes tem algo especial: os saberes das mães, avós e
bisavós, que remontam ao conhecimento de grupos indígenas sobre o manejo e uso
das plantas. Em 2012, cerca 20 mulheres foram reunidas na comunidade para
compartilhar seus remédios caseiros e formar o grupo de meizinheiras Pé de
Serra. No entanto, apenas três delas levaram para frente a tradição.
Valorização
De
acordo com Manoel Leandro, professor, educador e artista popular, a ideia de
reuni-las surgiu junto com o trabalho do Grupo Urucongo de Arte e Cultura,
formado por jovens de Chico Gomes. "Fazíamos o trabalho de memória
tentando revitalizar alguns saberes na comunidade, como danças e canções",
explica. A partir daí, as mães destes garotos e garotas começaram a acompanhar
as apresentações na cidade do grupo.
Com
o entusiasmo das mães, os jovens resolveram organizar o primeiro encontro de
saberes da medicina popular. "Pelo fato das mães nos acompanharem nas
atividades, pensamos em algo que pudesse juntá-las. Algum elemento que
possibilitasse a organização delas. Percebemos que o saber sobre ervas era algo
comum", lembra Manoel.
"Pelo
fato desse saber não estar sendo repassado para os mais jovens, pensamos que
podíamos trabalhar vários objetivos importantes em um só trabalho. Nem
imaginávamos que ia crescer tanto. O objetivo era revitalizar saberes
importantes para a comunidade. Esse saber sobre ervas era fundamental que fosse
repassado", completa Manoel.
Uma
das responsáveis por dar continuidade ao trabalho com medicina popular foi a
própria mãe de Manoel, a agricultura Maria Leandro, 71, conhecida como Rina. No
seu terreiro aconteceu o primeiro encontro e, desde então, não parou mais.
"Aprendi com minha vó. Fui criada sem mãe. Ela fazia chá de limão com alho
para a gripe. Hoje, uso também a malva do reino, a hortelã. Para o lambedor
junta o jatobá, imburana, espinho de cigana, cebola branca e alecrim",
conta.
"Nascida
e criada" em Chico Gomes, como ela mesma fala, Rina, cresceu plantando
feijão, arroz, milho, fava e cana-de-açúcar. Da roça, veio o contato com as
plantas, que depois levou para dentro de casa. Sua trajetória é parecida com a
de Maria da Penha do Nascimento, conhecida Peinha, 65, sua vizinha, amiga e uma
das meizinheiras. Seu contato com a medicina popular veio também por meio de
sua vó. "Ela gostava muito de fazer remédio, mas eu não prestava muita
atenção. Ela fazia chá, lambedor", lembra.
Um
pouco mais abaixo da casa das duas, mora Maria Juraci dos Santos, 69, conhecida
como dona Iraci. Natural de Barbalha, há 50 anos ela mora em Chico Gomes e teve
que aprender os saberes da medicina popular para cuidar dos nove filhos.
"Hoje cada um é dono de si", se orgulha a agricultora e meizinhera.
Juntas, Iraci, Rina e Peinha mantém o grupo e foi desenvolvendo produtos a
partir de oficinas e encontros, a partir de 2012.
Com
o grupo formado, a Cáritas de Crato organizou oficinas para produção de
sabonetes e pomadas a partir das plantas medicinais encontradas da Chapada do
Araripe. Até hoje, as três mantém o trabalho e são estes os produtos mais
vendidos por elas. "Não foi difícil aprender", conta Rina.
"Aprendemos ligeiro demais", completa Iraci.
Para
fazer o sabonete, elas tiram a casca da aroeira e cortam, deixando em uma
garrafa de álcool por 15 dias. A glicerina é desmanchada em banho-maria e
acrescentada com um pingo da essência que se formou a partir da planta. "É
bom para a pele e ajuda na desinflamação", garante Iraci, ao apontar para
uma ferida recém-curada em sua perna, lavada diariamente com o produto.
Apesar
de ser o mais vendido, o sabonete não gera uma renda significativa para as três
mulheres. "Eles ajudam a gente, mas não daria pra viver disso. É mais
porque a gente gosta", conta Peinha. No entanto, elas admitem que, quando
a comunidade recebe visitantes, o comércio destes produtos aumenta. Até mesmo
turistas franceses levaram para casa seus sabonetes. "Hoje mesmo recebi
uma encomenda de 50", anima-se Iraci.
Na mata
e no quintal
As
plantas são encontradas, em sua maioria, no meio do mato, como a imburana, o
jatobá, o angico e o muçambê. Outras são plantadas nos terreiros de casa, como
a malva do reino, o hortelã. Porém, alguns outros são comprados na sede de
Crato. Eles são usados, principalmente, para fazer o "lambedor",
remédio caseiro popular contra tosse e gripe. Cada uma tem seu toque, seu jeito
de fazer. Iraci usa cascas, já Rina e Peinha usam mais folhas, acrescentando
gengibre e romã.
Para
fazer o lambedor, tira todas as folhas e/ou cascas, junta tudo na água e
acrescenta o açúcar. Deixa ele no fogo, de preferência a lenha, para cozinhar.
Ele tem que ficar "meio dia" no fogo ou cerca de 12h. "Aí vai
apurando. Quando está tudo cozido, vai baixando o fogo para engrossar o mel. Se
botar quatro litros de água dá um litro", explica Peinha. Depois disso,
coa e pode servir. "Se tem aquela tosse agarrada, toma três vezes por dia.
Ele cura, mas primeiramente é a fé em Deus", receita Iraci.
"Muita
gente tem tomado o remédio e vindo aqui agradecer", conta Iraci. Ela já
levou seus remédios caseiros para a feira no bairro Mirandão. "Vendi
bastante", completa. Na semana seguinte, retornou para vender mais e
recebeu outros pedidos. Segundo ela, esses saberes eram ocultos. Hoje, as três
saem de Chico Gomes para ensinar e também aprender com os encontros que já
participaram no Crato e em outros municípios, como Porteiras e Exu (PE).
Estes
encontros tem consolidado ainda mais a amizade de Iraci, Peinha e Rina. "A
gente se considera como irmãs. É sempre nós três", admite Peinha. Quando
tem uma feira ou reunião, todas levantam cedo e se organizam para ir juntas.
"Me sinto bem demais nesses cantos. Ser reconhecida, conhecer outras
pessoas, outras experiências, aprender mais", completa a meizinheira.
Dificuldade
As
tradições da fitoterapia, sobretudo na zona rural, são impulsionadas pela
dificuldade de atendimento médico que as comunidades têm, principalmente, por
causa do acesso das estradas. Em Chico Gomes, por exemplo viveram parteiras
notáveis, no início do século XX, como dona Cândida e Vicença Mané. Hoje, por
lá, não tem posto e um médico vai consultar as pessoas na capela a cada 15
dias. Na última semana, isso não aconteceu por causa dos buracos formados pelas
últimas chuvas, que dificultam a passagem de veículos.
Em
cada quintal, seja na zona rural ou urbana, a presença de plantas medicinais
ainda é forte. Nas feiras, é comum encontrá-las. Por isso, Rina acredita que os
filhos e netos vão manter a memória e repassar os saberes de lá. "Os
meninos daqui se interessam. Acho que vai dar para manter", projeta. Já
Peinha vê em suas filhas a continuação da medicina popular na comunidade.
"É pra elas levarem para frente. Todas já sabem fazer seus chás. Uma já
indica chá para mim", conta com orgulho.
Turismo
comunitário
Além
dos saberes das meizinheiras, a comunidade de Chico Gomes tem desenvolvido
diversas atividades para atrair turistas. O grupo Urucongo realiza, em noites
de lua cheia, a "Balada Coco", com música, dança e comidas típicas;
e, nas manhãs, o café com poesia.
Mais
de mil pessoas, até de outros países, já visitaram o Sítio. Lá também é
desenvolvida a experiência agroecológica por meio de mandala e trilhas
ecológicas guiadas pelos moradores.
(Diário do Nordeste)
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