Rafael Albuquerque, 28, produz objetos de couro há cinco anos. Começou fazendo sandálias. Hoje, se dedica às bolsas e expõe a mercadoria de outros artesãos em sua loja. FOTO: Antonio Rodrigues |
Crato. Com 9
anos, José Alves Feitosa, conhecido como Juarez, entrou numa oficina de
artefatos de couro "para aprender a arte". Ganhando três cruzeiros
por semana, fazia compras, varia o chão e entregava recados, mas, aos poucos,
por curiosidade, foi aprendendo a costurar vendo o gibão, selas e chinelos
surgindo das mãos dos artesãos. Seu patrão, José Ferreira de Lima, foi
confiando nele que, autodidata, se tornou um dos principais mestres cratenses
na confecção de itens dessa matéria orgânica. Hoje, aos 76 anos, possui vasta
clientela no Cariri.
Mas
isso só foi possível pela curiosidade. "Malinando", como ele mesmo
descreve, desmontava a máquina de costura, observava onde agulha entrava e
fazia o laço. Daí, aprendeu a consertá-las. Com o tempo, já ganhava mais de 100
cruzeiros por semana, engrossando sola, couro, cortando capa, bordando e
desenhando nas selas. "Eu era um terror. Menino sadio, forte e
inteligente", exalta.
Ainda
jovem, trabalhava com o mestre do couro José Gonçalves, que adoeceu. Ficou para
Juarez a missão de substitui-lo enquanto o artesão estava internado. O jovem
pegou a chave e, dias depois, entregou duas selas que estavam encomendadas.
"Pegue sua mesa. Você vai trabalhar", ouviu de seu patrão, e desse
dia não parou mais. Na oficina dele, ficou 32 anos e, depois, foi trabalhar por
conta própria.
Carreira
solo
Comprou
uma máquina de costura pequena e, como já era conhecido, os clientes logo foram
ao seu encontro. Sela, arreio, bainha de faca e de revólver, gibão, blusão de
motoqueiro, chinelo, bota. Tudo isso ele fazia e faz, com couro de bode.
"Minhas selas tinham desenho. Cheguei a um limite que parei a oficina.
Ficava cinco, seis selas sem terminar, porque queriam que eu fizesse.
Aprenderam onde era minha casa e ficavam atrás de mim", lembra o artesão.
Na
década de 1980, Juarez resolveu fazer umas selas na zona rural de Várzea
Alegre. Em três meses, conseguiu 3 mil cruzeiros e, desse dinheiro, conseguiu comprar
uma máquina de costura maior. "Aí montei uma oficina, no bairro São
Miguel, e deu certo", pontua. Foi nesse período que as vendas começaram a
fracassar. Era início da década de 1990 e o então governador Tasso Jereissati
investiu na atração de indústrias para regiões economicamente menos
desenvolvidas do Ceará. O programa oferecia incentivos fiscais e financeiros,
apoio tecnológico e infraestrutura. O Cariri, sobretudo Juazeiro do Norte, se
tornou um polo calçadista de destaque, que, de certa forma, afetou a produção
de sandálias de couro.
Virada
"Até
que chegou um rapaz atrás de alguém para fazer aquelas luva industrial"
conta o artesão. A encomenda, de três pares, era só a primeira, já que o homem
garantiu que, se tivesse durabilidade, "eu ia ganhar muito dinheiro",
lembra. Depois de um mês e 15 dias o cliente voltou. "As luvas só se
acabaram agora", disse. Daí, começou a produzir 400 pares por semana e
contratou mais três pessoas para trabalhar com ele. Dois cortando, Juarez
montando e costurando e outro só revirando. "Ganhava 50 mil reais na
semana. A semana que ganhei menos, foram 37 mil. Comprei duas casas e material.
O negócio andou. Melhorou minha vida por completo", conta.
Em
1987, Juarez Feitosa se estabeleceu no local atual de sua oficina, no bairro
Vila Alta. O terreno foi comprado a prestação e, com o dinheiro que conseguiu,
construiu uma casa no andar de cima. Mas o dinheiro não foi suficiente e teve
que vender todas as suas ferramentas e materiais para concluir a obra. Só
sobrou uma sela. "Dessa sela, virou isso tudo de novo, fazendo o máximo de
economia", explica o artesão. Hoje, ele não pensa em parar, mesmo já
recebendo sua aposentadoria. "Estou bem, com saúde sobrando. Durmo bem,
como bem. Não me canso", justifica. Em alguns dias, ele fica até as 23h no
serviço, que começa logo cedo. Para inspirar, bota uma música de Nelson
Gonçalves ou Orlando Silva e vai costurando noite adentro.
Na
apertada oficina, Juarez não para. O vai e vem de clientes é incessante.
Rapidinho, consertando uma máquina de costura, ele ganha R$ 40. Outro encomenda
uma bainha de revólver, que já tira R$ 100. Ainda aparece algum e pede para
consertar uma sela, que já rende R$ 80. Assim, vai levando. "Eu já tenho
freguesia", gaba-se. Alguns são fazendeiros, que chegam a comprar um
uniforme de couro completo, com gibão e perneira, que custa R$ 1.200. Todos
seus produtos são separados em um catálogo com fotografias. Cadeira, alforje,
cartucheira, blusão de motoqueiro são alguns dos itens expostos. De
Cachoeirinha (PE), compra um cento de couro de bode, em média, por R$ 50. A
vaqueta, ideal para bolsas, é comprada em Juazeiro do Norte por R$ 70 cada
metro.
"Minhas
bolsas são muito desenhadas e recortadas. Os outros fazem serviço diferente. O
meu desenho é meu. Eu faço no olho. Você pode botar um compasso, uma trena que
sai de um tamanho só", garante Juarez. Mesmo assim, o artesão admite
inspiração no Mestre Assis, que trabalhou ao seu lado na oficina de José
Ferreira. "Era um artista. Um absurdo, um cara fantástico", elogia.
Além dele, também tinha Chico Preto, que foi embora para São Paulo e o deixou
como substituto.
Inspiração
Do
trabalho de Juarez, surgiram outros importantes artesãos no Crato. Um deles é
Rafael Albuquerque, 28, natural de Barbalha, que faz artefatos de couro há
cinco anos. No entanto, seu "mestre" foi André Cardoso, de quem ficou
amigo e depois foi convidado a trabalhar. Até então eletricista, Rafael largou
o emprego e passou uma semana na oficina criando sandálias. "Ele me deu o
pontapé", destaca.
Alguns
anos depois, Rafael passou a trabalhar por conta própria, fazendo conserto de
bolsas e calçados de couro e, aos poucos, foi produzindo as próprias peças.
"Nas horas vagas, fazia uma peça e ia pendurando", conta. No espaço
apertado, dividia a oficina e a loja. "O povo ia gostando e comprando. Daí
comecei a produzir mais que consertar", explica. Surgia o "Matulão:
couro do sertão", no Centro de Crato.
Com
o passar do tempo, Rafael largou a produção de calçados para não competir com
André Cardoso, seu amigo e especialista nesse tipo de produto. Daí, resolveu
começar a fazer bolsas. As primeiras não ficaram muito boas, mas, mesmo assim,
o artesão foi se aperfeiçoando, pedindo dicas, inclusive, de Juarez Feitosa.
"A minhas bolsas são inspiradas nas coisas de seleiros, isto é, traçado de
sela. Todo seleiro faz esses desenhos. Eu me inspiro nesses rabiscos",
explica.
Quando
ele não produzia mais de tanta demanda, resolveu aumentar a sua loja e deu
espaço para outros artesão cratenses. Ao todo, dez produtores expõem na "Matulão".
"Os caras são fera, mas fazem tudo no fundo do quintal da casa deles. Abri
a loja, coloco meu produto e dou espaço para outros. Tenho mercadoria de vários
artesãos. Eles não têm oportunidade", justifica Rafael. No Centro, a
visibilidade é boa, assim como na Internet, onde tem uma loja virtual e vende
sob encomenda para outros Estados.
"Trabalhando
com André, comprei uma máquina de costura. Nem podia pagar. Com ela, desci para
cá só. Meti a ripa e comprei outra. Apertado. Achei melhor investir nas
ferramentas, para me poupar, ter menos mão de obra.
Quando
consegui montar o ateliê, subi para só produzir. Aqui não tinha muito tempo,
chegava alguém, ficava conversando, perguntando. No sábado, venho pra cá
conversar com os clientes", descreve.
"Hoje,
vivo disso. Produzo em casa e trago para cá. Está dando certo, só crescendo.
Quando iniciei, não sabia bem o que era o couro, era mais desvalorizado. Hoje,
todo mundo quer ter uma peça dessa", garante. Ele explica que, para
trabalhar com bolsas, o preço das peças depende da qualidade do couro. Só a
matéria-prima de 1,2m, sai por R$100. Isso encarece, no fim, o item, que demora
de dois a três dias para ficar pronto. "O que valoriza a peça é a mão de
obra da gente", acrescenta. Com ateliê montado, Rafael se orgulha da vida
de artesão, inclusive, duas mulheres que trabalham com ele já estão aprendendo
essa arte. "Ser artesão é bom demais, porque você é livre", resume.
Enquanto Juarez, 48 anos mais velho, mostra sempre gratidão ao trabalho com o
couro. "O couro é tudo. Eu vivo dele, gosto muito da arte. Foi dele que
construí meu patrimônio. Hoje, moro numa casa a custo do couro. Eu não ganho
mal, eu ganho bem", ressalta.
Mais
Informações:
•
Oficina Padre Cícero
Juarez
Feitosa
Avenida
Tomaz Osterne de Alencar, 1267, Vila Alta - Crato
(88)
9 9622-4702
•
Matulão: couro do sertão
Rafael
Albuquerque
Rua
José de Alencar, 92, Centro - Crato - (88) 9 9979-6039
Instagram:
matulao_couro.Oficial (Diário
do Nordeste)
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