Juntei-me
a Rosenbaum - no achegar e no reverenciar -, enquanto a equipe escolhia a
melhor posição para captar som e imagem. Em uma conversa rápida, mas recheada
de causos e memórias, aproveitei para repassar a proposta da entrevista:
presenciar uma conversa entre os dois sobre diversos temas, sem perguntas,
apenas algumas conduções - caso necessário.
"Que
honra estar aqui. Sempre um grande prazer encontrar o senhor", iniciou Rosenbaum
ainda com o olhar de admiração. "Prazer. Quando ouvia falar no teu nome,
pensava assim: 'Um dia eu vou conhecer ele'", brincou o artesão
retribuindo a delicadeza.
Entre
simpatias de via dupla, o paulista e o cearense relembraram a primeira vez que
se viram, durante um evento em Recife. A data é dúvida: se há oito anos ou uma
década. "Fiquei nervoso de conhecer o senhor. Pra mim, o senhor é um
símbolo muito grande da nossa cultura.
É um mestre", confessou o designer.
"Eu
tenho esse título de mestre,
mas um mestre não é essas coisas todas não. É uma prova que a gente já fez
alguma coisa dentro da nossa cultura. Eu não posso fugir disso aí", disse
Seu Espedito, sobre ter sido nomeado Mestre da Cultura em 2008 (Tesouros Vivos)
pelo Governo do Estado do Ceará.
Trajetória
O
mestre, que completou 79 anos no mês passado, relembrou o início da trajetória.
"Eu comecei com oito anos. E acho que para a cultura ser original tem que
começar a fazer novinho, quando você não tá interessado em enricar. É uma coisa
que vem do coração".
"E
tem que ser assim mesmo. A criança com oito anos está pura. Vai pegando a
essência, entendendo, incorporando o saber. Tá aprendendo história, geografia,
sobre bioma", complementou Rosenbaum. "Os filhos do senhor trabalham
com o senhor, né?".
"Trabalham.
Do jeito que eu comecei mais o meu pai, trabalhando novinho, eu botei meus
filhos pra estudar e trabalhar. Chega do colégio, 'tem alguma coisinha que a professora
mandou fazer? Faça e depois vá pra oficina'", detalha a rotina no Sertão para refletir em
seguida. "Não é explorar. Mas você pega a criança, dá um lápis e diz:
'olha, você vai desenhando um cachorro, um porco, um rato'. E vai movimentando
a imaginação dela".
Valor
da arte
"O
pessoal que quer mandar no Brasil deveria valorizar mais um pouquinho a
cultura. Eu já passei um sufoco tão grande pra manter esse trabalho meu. Na
época que apareceu o plástico, sintético, borracha, essas coisinhas
grã-finazinhas. O que tinha de sapateiro, seleiro, que não queriam mais
trabalhar com couro... Você tem que curtir, tratar, pintar, desenhar, fazer
dele uma peça", expôs o produtor de arte de Nova Olinda, no Cariri
cearense.
Os
desdobramentos sobre o impacto do avanço tecnológico se prolongaram por alguns
minutos em opiniões convergentes de ambos os lados. A prosa encontrou cama na
economia criativa, suscitada por Rosenbaum. A teoria defende valorização
equivalente para a concepção tanto quanto para o produto final.
"E
essa coisa do tal do desenvolvimento, que é disfarçado pra exatamente trazer a
coisa mais fácil. Mas ela vem com petróleo,
importada, desqualifica a mão de
obra local", embrenha Rosenbaum no tema. "E é
aqui que entra o mestre. Exatamente no lugar dessa consciência de tá lá
resistindo, sobrevivendo, mesmo sem dinheiro, muitas vezes", complementa.
"O
senhor manteve, está resistindo e é reconhecido. Mas quantas pessoas
nesse Brasil profundo
têm esse saber e estão esquecidas", questiona o paulista como forma de
crítica ao modelo mercadológico.
Mergulho
na cultura
Nesse
momento, cito o projeto "A gente transforma", criado coletivamente e
integrado por Marcelo Rosenbaum. A iniciativa promove um resgate da memória dos
povos nativos brasileiros por meio de expressões artísticas feitas ou
inspiradas por eles.
Um
dos trabalhos foi a coleção que se concretizou no sertão do Piauí, em Várzea Queimada. O
povoado transforma pneus em joias e palha de carnaúba em acessórios.
"Metade
é índio e metade é negro. Mas eles não se consideram nem índio nem negro, eles
são eleitores. A única oportunidade que têm na vida deles é quando vem a
eleição", avalia Rosenbaum.
Com
a fala entusiasmada e acompanhada de sorrisos emocionados, ele suscita uma
visita carregada de simbolismo ao espaço de trabalho de Seu Espedito Seleiro.
"O pessoal de Várzea foi visitar o ateliê do senhor. O seu João da Cruz,
que é um vaqueiro,
fundador da comunidade, quase chorou de emoção quando viu o gibão do senhor e botou
aquele chapéu branco". Enquanto isso, seu interlocutor acompanhava com
feições de prazer, como se reconstruísse a cena na cabeça. "Agora que tô
entendendo: pro vaqueiro a roupa é o momento máximo", arrematou Marcelo.
Um
suspirar profundo de contentamento do artesão encerrou a conversa com uma frase
que poderia ser o verso de um ode ao sertanejo. "(Vestir o gibão) É mesmo
que dizer: 'você vai morrer e vai pro céu'".
Saiba
mais:
O
encontro entre Marcelo e Espedito aconteceu durante o Encontro na Vila, projeto
do Beach Park. Em um evento aberto ao público, o
bate-papo contou ainda com a presença de Bianca Misino, representando local
Catarina Mina. O trio conversou sobre sustentabilidade na moda, no
artesanato e na arquitetura. (Diário do Nordeste)
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