Falta de saneamento no bairro Pio XII, em Juazeiro do Norte. Problema afeta várias cidades do interior. FOTO: Antônio Rodrigues
Estudos já detectaram a presença de material genético do novo coronavírus em redes de esgoto de pelo menos três estados brasileiros - Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. No Ceará, ainda não há estudos neste sentido, porém, especialistas demonstram preocupação pela situação precária de saneamento básico (ou falta dele) em grande parte dos municípios. 

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), um total de 520 mil domicílios cearenses (17,7%) ainda despejam seus resíduos em valas, fossas rudimentares, rios, lagos ou mar. Além disso, outros 981 mil domicílios (33,5%) não possuem fossa séptica ligada à rede geral de esgotos. A realidade potencializa o surgimento de patologias nessas regiões. 

Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), da Organização Mundial da Saúde (OMS), embora investigações iniciais apontem que o vírus possa estar presente em fezes, ainda não há relatos da transmissão da doença por esta via. "Pesquisas já mostram que pode ser eliminado nas fezes. Porém, isso não garante que o vírus está vivo, ativo e capaz de contaminar", explica Keny Colares, infectologista do Hospital São José. "Claro que preocupa, mas o fato de ainda não ter relatos da transmissão mostra que está longe de ser um fato. Acho que é algo que merece ser estudado", destaca o pesquisador, que atua na área de Virologia. 

Pesquisa 
No Estado, ainda não há pesquisas neste sentido. A Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece), que acompanha 152 municípios, informou, em nota, que está levantando informações e metodologias para avaliar a implantação do monitoramento na rede acompanhada. Dos domicílios geridos, 98,33% possuem cobertura para abastecimento de água e 42,93% para esgoto. Em Fortaleza, os percentuais são de 98,66% e 62,74%, respectivamente. 

A Secretaria das Cidades do Ceará também foi questionada sobre a possível presença do vírus, mas não retornou à reportagem. 

Waleska Martins Eloi, professora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Gestão e Tecnologia Ambiental do Instituto Federal do Ceará (IFCE), destaca que é preciso entender o funcionamento do vírus também nas redes de esgoto. "Dependendo do comportamento, poderemos ter disseminações de vinculação hídrica", destaca, o que pode apontar para impactos "severos na vida das populações mais pobres". Além disso, já há outras doenças, que não deixaram de existir durante a pandemia, causadas pela ineficiência ou inexistência do saneamento básico. "Significa mais postos de saúde lotados", afirma. 

A preocupação se traduz em números. Conforme a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) 2019, do IBGE, menos da metade dos mais de 2,9 milhões de domicílios pesquisados no Ceará têm sistema de esgotamento ligado à rede geral ou pluvial, ou fossa séptica ligada à rede - são 1.431.000 domicílios. 

Com o despejo de resíduos sendo realizado sem tratamento, ficando, muitas vezes, expostos a céu aberto, a circulação de vírus e outros agentes patológicos é facilitada. "Temos uma contaminação provável no lençol freático, podendo contaminar também poços de água", avalia Martins. "Não é coisa que se resolva em um ano ou dois. São de 10 a 15 anos para termos um saneamento integral". 

No entanto, medidas mais urgentes e pontuais também podem ser tomadas em menor espaço de tempo para garantir o mínimo de condições sanitárias às famílias. "Inicialmente, é preciso garantir o fornecimento de água potável. Temos muitas famílias que ainda utilizam água não confiável", ressalta Martins. "Também é possível amenizar a questão do esgoto, com construção de fossas verdes, por exemplo, que já reduzem esse impacto. Mas a principal medida, hoje, é gerar uma grande conscientização. Ainda temos muitas pessoas que não acreditam e não temem o vírus", aponta a professora. 

Municípios 
Segundo a Cagece, o conceito de saneamento básico considera, além de sistemas de esgotamento sanitário e abastecimento de água, outros componentes, como drenagem urbana e coleta de lixo. Um dos pontos para assegurar a qualidade dos serviços é a formulação e execução dos Planos Municipais de Saneamento Básico (PMSB). 

Em janeiro deste ano, das 184 cidades do Estado, 40 estavam com o processo de elaboração em andamento e 38 ainda não haviam começado. Hoje, dos municípios acompanhados pela Cagece, 55 ainda não finalizaram o documento. Já das 33 cidades acompanhadas pela Fundação Nacional da Saúde (Funasa), apenas 10 haviam concluído o documento, em janeiro. Tentamos contato com o órgão para saber se houve alterações, mas não tivemos retorno até o fechamento desta edição. 

Para o médico, presidente da Associação dos Municípios do Estado do Ceará (Aprece) e prefeito de Cedro, Nilson Diniz, o documento é o básico, mas ainda é preciso caminhar em outras frentes. "Sempre ouvi falar que o saneamento é uma prioridade, mas nunca saiu do papel. Quando a gente tem um problema desse tipo, principalmente, se analisarmos os municípios mais pobres (com PIB muito baixo), o Estado precisa investir", explica o prefeito. 

No último dia 24, o Senado aprovou o novo marco legal para o saneamento básico no Brasil, que permite a atuação do setor privado nesta área. Para Diniz, é possível que haja uma concentração dos investimentos nas áreas mais ricas (maiores PIBs). "O Governo vai precisar garantir nos municípios pobres", aponta. "A maioria, hoje, já não tem saneamento básico. Aqui, no Cedro, só 13% das casas têm rede de esgoto. Os outros municípios estão na mesma realidade. A pandemia só agrava a situação. Faltam recursos e estamos em uma crise financeira sem precedentes no País. Não vejo solução a curto prazo diante deste cenário", afirma. 

Estudo 
O superintendente de planejamento da Agência Nacional de Águas, Sérgio Ayrimoraes, que participou dos estudo de detecção do novo coronavírus em redes de esgoto de Belo Horizonte e Contagem, em Minas Gerais, explica que o estudo tem efeitos práticos. "O objetivo é servir como uma ferramenta de vigilância epidemiológica, e o monitoramento é uma estratégia. Captura, inclusive, portadores do vírus assintomáticos. A partir da concentração, é possível estimar a população que está infectada", ressalta. 

"Os dados são reportados à Secretaria de Saúde do Estado, que tem pautado estratégias com base em resultados. O projeto já tem mostrado áreas onde pode ser aprimorado o isolamento", completa Ayrimoraes. 

No Ceará, ainda não há data prevista para execução de uma pesquisa de detecção do vírus em redes de esgoto.                   (Diário do Nordeste)

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