FOTO: Helene Santos
Em 13 de junho de 1990, nascia o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Exatas três décadas se passaram e o conjunto de normas segue enfrentando problemas para ser efetivado. No Ceará, um dos gargalos está na ausência de políticas públicas de acolhimento institucional, que amparam crianças e adolescentes vulneráveis em casos extremos: quando há o abandono ou violência familiar e o habitual lar deixa de ser uma opção. Segundo o Ministério Público do Ceará (MPCE), 135 dos 184 municípios cearenses (73,3%) não possuem medidas protetivas para atender este público. 

"Em aspecto prático, se aparecer uma criança abandonada, por exemplo, nenhuma dessas 135 cidades têm como atendê-la a partir de seus próprios recursos, sendo obrigadas a pedir auxílio do Estado ou de município vizinho", explica o coordenador auxiliar do Centro de Apoio Operacional da Infância, da Juventude e da Educação (Caopije), promotor Dairton Costa. 

O doutor em Psicologia Social, Vinicius Furlan, ressalta que, quando a criança é retirada de seu município, o "primeiro dano é a provável perda total do vínculo com os pais e do direito à convivência familiar e comunitária". Com isso, a reintegração não se concretiza. "O resultado disso são dois abandonos: da família, que fica privada do trabalho social para que ressignifique o que está vivendo, e da criança, que pode passar o resto da vida na instituição". 

Serviço regionalizado 
As medidas de acolhimento integram os Serviços de Proteção Social de Alta Complexidade do Sistema Único de Assistência Social (Suas), financiados pela União. Após a criança ou adolescente estar sob medida protetiva, há um tempo máximo de 18 meses para decidir se há a possibilidade de retorno à família ou não, acontecendo, assim, a destituição familiar e entrada no Cadastro Nacional de Adoção. 

"No processo de visita às unidades, começamos a ver crianças com seis anos no acolhimento", pontua Adriana Pinheiro, assistente social do Caopije. Desde 2017, ela realiza um trabalho de visita e avaliação nos 27 municípios do interior com políticas protetivas. Segundo levantamento realizado em junho, 250 crianças e adolescentes se encontram nas 28 unidades de acolhimento do interior. 

O serviço acontece, principalmente, em abrigos institucionais, públicos ou terceirizados. Do total de acolhidos no interior, 15 são naturais de cidades que não possuem política de atendimento protetivo. A maior demanda, no entanto, se dá na Grande Fortaleza, onde 22 cidades prestam o serviço. Ao todo, 127 crianças ou adolescentes saíram do local de origem e estão institucionalizadas na Capital ou RMF. 

Furlan avalia que, nestas situações, os impactos podem ser muitos e de diferentes naturezas. Para municípios menores, o pesquisador aponta que podem ser implantadas Casas-Lares e, principalmente, o Programa Família Acolhedora, que eleva o índice de reintegração familiar. "Este serviço é feito com famílias da cidade, pessoas da própria comunidade que acolhem a criança e sua família e colaboram nessa reconstrução". 

Reintegração 
Um dos 60 acolhimentos no Ceará é o Municipal Espaço Vida, em Tianguá, que pode receber até 20 crianças e adolescentes - hoje, a ocupação está em 50%. "Resgatar o vínculo familiar a distância é mais complicado e ficou ainda mais na pandemia", ressalta Marília Carvalho, coordenadora da Unidade de Acolhimento Municipal. 

"O fortalecimento acontece com a família natural (pai e mãe), por meio de visitas, acompanhamento e tentativa de superação em suas fragilidades. Não só por nós, mas por todos os órgãos municipais possíveis, como o Caps e Centro de Referência da Assistência Social. Quando percebemos que a família está melhor, sugerimos o retorno gradativo". 

Durante o distanciamento social, o contato está acontecendo de forma remota. Caso haja a destituição familiar e a criança ou adolescente entre no Cadastro Nacional de Adoção, é iniciado todo o trâmite legal para encontrar uma nova família. "Quando são de perfil tardio, mais que 8 anos e com alguma deficiência, muitas vezes é difícil a adoção", explica Carvalho. Em janeiro deste ano, a cidade implantou, também, o projeto de apadrinhamento, que pode ser afetivo, financeiro ou para prestação de serviços, sem a criação de vínculo jurídico entre padrinho e afilhado. 

Rede de investimento 
Segundo o Ministério da Cidadania, o Estado deve ofertar o serviço regionalizado de acolhimento institucional para municípios com menos de 50 mil habitantes. No Ceará, as unidades regionais ficam em Jaguaruana e Itaitinga, atendendo a 12 cidades. "Acolhem crianças e adolescentes de municípios de pequeno porte bem como casos considerados excepcionais. São situações em que a permanência no território de residência do acolhido possa ensejar ameaça a sua integridade física", explica Pinheiro. 

A Secretaria de Proteção Social informou, em nota, que conta com 10 unidades institucionais de acolhimento na Grande Fortaleza, com a oferta de 232 vagas. A Capital possui três casas de abrigo de gestão direta e seis de gestão indireta. Conforme a SPS, estão previstos mais dois abrigos regionais para atender a outros 13 municípios. 

30 anos de ECA 
Segundo a SPS, as três décadas de instituição do ECA significam um marco regulatório importante na garantia dos direitos das crianças e adolescentes. "Ofertamos o abrigamento institucional e gerimos essa política, auxiliando os municípios no trabalho com conselhos tutelares, Centro de Referência de Assistência Social e Cras". Os dois últimos equipamentos contemplam a estrutura de assistência social básica do Suas, no caso do Cras, e de média complexidade, nos Creas. 

Para Renan Santos, assessor jurídico do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) Ceará, o investimento no Sistema é fundamental para assegurar o cumprimento do ECA. "Os municípios não priorizam ou não têm recursos para fazer valer a lei", avalia. O problema de financiamento não vem de agora. O orçamento dos recursos às redes socioassistenciais pelo Suas estão diminuindo ao longo dos anos. Segundo o Ministério da Cidadania, o valor para 2020 é de R$ 1,5 bilhão - em 2019, foram R$ 2,2 bilhões e, em 2018, de R$ 2,4 bi. 

Embora questionado, o Ministério não informou quanto foi repassado ao Ceará neste ano. 

Em 2019, no entanto, foram mais de R$ 138 mi, sendo R$ 4,3 mi para acolhimento de crianças e adolescentes. Os recursos repassados ao Estado vêm variando: R$ 136 mi, em 2017; R$ 149 mi, em 2018; e R$ 138 mi, em 2019. Em nota, o Ministério informou que "a distribuição dos recursos para o cofinanciamento de serviços e programas depende de um conjunto de critérios e parâmetros observados ao longo do exercício". A Pasta não deu mais detalhes. 

Para incentivar a criação de políticas protetivas básicas onde elas não existem e otimizá-las onde estão presentes, o MPCE está desenvolvendo o Projeto Minha Cidade Meu Abrigo. "Se destina a fazer com que cada cidade institua, a partir de recursos próprios ou em parceria com o Estado ou União, pelo menos uma política pública protetiva", explica o promotor Dairton Costa. 

Com ausência de medidas para atender crianças e adolescentes vítimas de violações, centenas de pessoas nesse grupo etário estão, hoje, sob medidas protetivas longe de seu lugar de origem, perdendo o vínculo comunitário e familiar. 

Veja quais os municípios com medidas (Fonte: MPCE): Acaraú; Acopiara; Aquiraz; Aracati; Barbalha; Brejo Santo; Campos Sales; Canindé; Caucaia; Crateús; Crato; Horizonte; Iguatu; Ipu; Itapipoca; Itarema; Juazeiro do Norte; Limoeiro do Norte; Maracanaú; Maranguape; Mauriti; Missão Velha; Morada Nova; Nova Russas; Orós; Pacajús; Quixadá; Quixeramobim; Quixeré; Russas; São Benedito; Sobral; Tauá; Tianguá; Eusébio; Fortaleza; Antonina do Norte; Guaraciaba do Norte; São Gonçalo do Amarante; Carnaubal; Fortim; Icapuí; Itaiçaba; Itaitinga; Jaguaruana; Monsenhor Tabosa; Pindoretama; São João do Jaguaribe e Tabuleiro do Norte.

(Diário do Nordeste)

Post a Comment