Foto: Mateus Monteiro em 26/2/2015

Morreu por volta das 23h30 desta quinta-feira, 15, aos 86 anos, o mestre da cultura cearense, instrumentista e dançarino cratense Raimundo Aniceto. Lidando com impactos de um Acidente Vascular Cerebral (AVC) sofrido há alguns anos, ele estava internado no Hospital São Francisco (São Camilo) desde sábado (10), mas segundo familiares, há 22 dias vinha bastante debilitado. 

Conforme a família, Raimundo Aniceto estava com problemas no coração, mas a Covid-19 só foi descoberta após sua internação. Antes, três exames em sua casa deram negativo para o novo coronavírus. No hospital, teve falência múltipla dos órgãos.

Integrante da banda cabaçal dos Irmãos Aniceto - importante e centenário grupo da região do Cariri - e membro remanescente da segunda formação do conjunto, Raimundo desponta como um dos mais importantes nomes da cultura cearense e deixa três filhos e um legado extenso. 

As origens dos Aniceto enquanto conjunto são difíceis de definir, mas é certo que a banda é fruto de tradições ancestrais herdadas dos indígenas Kariri, que viviam onde hoje é a região do Cariri cearense. Uma figura central na criação da banda cabaçal é Zé Aniceto, pai de Raimundo, que seria o fundador “oficial”. No entanto, o avô de Raimundo é citado como criador do grupo em tempos ainda mais remotos. 

“No Crato tinha a aldeia dos índios Kariri. (A banda) foi criada na aldeia, fazia as animações”, contou Raimundo no episódio dedicado aos Acineto da série "Os Cearenses", produzida em 2015 pela Fundação Demócrito Rocha. Naquele ano, o grupo comemorou 200 anos de história. Como já definiu o professor e pesquisador em cultura popular Gilmar de Carvalho, o tempo dos Aniceto é “mítico” e "de fabulação". 

Além da importância da oralidade e dos laços familiares na construção da banda cabaçal, os ofícios manuais também se destacam. A família fabrica os próprios instrumentos, além de vendê-los para interessados. Esse ofício é, também, uma herança indígena, com as percussões feitas com cabaçal e os pifes feitos com taboca, espécie de madeira semelhante ao bambu. Isso sem mencionar as danças e performances do grupo, no que é mais uma influência dos Kariri. 

Jeová Aniceto, sobrinho de Raimundo e filho de João Aniceto, já creditou a habilidade que tem no fazer manual ao tio. “Ele me ensinou a fazer o pífero. Essa taboca veio fazendo sucesso pelos Irmãos Aniceto. A gente faz o material e transforma em música, espetáculo e som", afirmou Jeová em "Os Cearenses". “Faço zabumba, tarol, casal de pife. Vai prontinha. Quando o camarada pede, eu faço tudinho. É um mês pra entregar uma banda completa”, garantiu Raimundo na mesma entrevista. 

O caráter familiar do conjunto segue forte, mantido de geração em geração. “Antes de meu pai falecer, ele pediu pra gente não deixar essa banda se acabar”, explicou Raimundo. Fazendo valer a promessa ao patriarca há décadas, o mestre deixou o posto de segundo tocador de pife da banda cabaçal quando o irmão Antônio, que ocupava o lugar, faleceu em 12 de janeiro de 2015. Então, Raimundo assumiu o posto de primeiro tocador e a liderança do grupo, sendo o último remanescente da segunda formação. 

Segundo ele, o pedido de Zé Aniceto pela continuidade veio por conta da crença que a “bandinha” ainda seria “uma princesa do Brasil”. “Que conversa, pai!”, reagiram os filhos à época. O fundador, porém, foi preciso na espécie de previsão. Os Irmãos Aniceto já se apresentaram em municípios da região caririense, nos palcos do Theatro José de Alencar e do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura - ambos em Fortaleza -, em estados de todas as regiões do Brasil e também fora do País. “De vez em quando a gente tá no mundo. Já vamos com uns 40 voos de avião", estimou Raimundo. 

O instrumentista e dançarino foi reconhecido como mestre da Cultura pela Secretaria da Cultura do Ceará em 2004. Já mais recentemente, em agosto de 2019, foi inaugurado o Museu Casa do Mestre Raimundo Aniceto, iniciativa que partiu do projeto dos Museus Orgânicos empreendido no Estado. A intenção foi a de seguir na preservação da história dos ofícios e artesanias do grupo e do mestre. 

Além da lida artística, Raimundo também seguia na roça. “Tudo é agricultor. A caneta que meu pai deixou com a gente foi a roça”, dividiu, para logo em seguida complementar: "E a banda". Entre reconhecimentos no Ceará, no Brasil e no mundo, confessou que dinheiro, mesmo, não havia muito. “A banda é rica! De amor, de amizade”, riu-se ao falar do assunto. “É uma maravilha. O público, as autoridades, o governo, tudo é uma coisa louca com a banda, maravilha. Mas na hora do dindim, é deste tamanhinho", dividiu, fazendo sinal com os dedos indicadores bem próximos. 

Acima de quaisquer problemas, porém, mestre Raimundo celebrava a vida e as experiências. “A gente é feliz com a banda, viu, graças a Deus. Todo mundo aprecia a gente. A gente, quando tá num show, Ave Maria, é uma coisa linda, uma festa”. Com a partida, a banda cabaçal seguirá, a partir do trabalho das novas gerações, na empreitada dessa festa que conecta as memórias ancestrais à contemporaneidade. Enquanto isso, pelo céu, o encontro de mestre Raimundo com o irmão Antônio, o pai Zé e toda a ancestralidade dos Aniceto e dos Kariri, certamente, estará sendo uma coisa linda, uma festa.

(Gazeta do Cariri - com informações do Jornal O Povo)

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