Da Bacia Sedimentar do Araripe, no interior do Ceará, para a Europa, Ásia e Estados Unidos. Esse é o destino de milhares de fósseis que saem de cidades como Nova Olinda e Santana do Cariri, no sul do estado, de forma ilegal, para abastecer um esquema internacional milionário. A região é uma das três mais ricas do mundo na quantidade dessas peças. Formadas há cerca de 110 milhões de anos, as peças de valor histórico incalculável são vendidas no exterior, conforme órgãos de investigação, por até 150 mil dólares cada uma, a depender da sua importância.

O negócio não é novidade. Pesquisadores da região apontam que ele ocorre desde o início do século XVIII e, com o passar do tempo, foi se adaptando às legislações e ganhando cada vez mais adeptos. Atualmente, os traficantes encontram no Ceará ausência de fiscalização federal — que é a principal responsável por esses bens —, ineficácia de ações estaduais e uma lei que data de 1942, quando Getúlio Vargas ainda era presidente do Brasil.

A Agência Nacional de Mineração (ANM), principal responsável pela fiscalização da extração mineral, fechou seu escritório na região em 2018. Para a delegada da Polícia Federal no Cariri, Josefa Lourenço, a fiscalização é “bem precária” e o fechamento do escritório foi “uma das maiores decepções para a polícia”.

A Polícia Federal e o Ministério Público Federal atuam na região coibindo o tráfico de fósseis, porém, ambos não têm função preventiva ou ostensiva frente a esses crimes e dependem de denúncias para iniciar as investigações. A partir delas, os órgãos conseguem desmembrar esses grupos, como a desarticulação de uma organização criminosa ocorrida em outubro do ano passado, a partir da Operação Santana Raptor.

Nessa operação, considerada a segunda maior sobre tráfico de fósseis no Brasil, um professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) foi alvo por supostamente integrar a quadrilha. Ao todo, foram cumpridos 19 mandados de busca e apreensão, e as apurações estão ocorrendo. A Polícia Federal informou que o pesquisador pagava “mensalidade” a operários para desviar as peças.

O relatório final deve ser apresentado pelas autoridades policiais em até três meses. O pesquisador nega qualquer relação e diz dispor de autorizações para guardar os fósseis que deram origem à investigação.

Dificuldade na repatriação

O Ministério Público Federal afirmou que a maioria dos procedimentos internos instalados apura a presença de fósseis cearenses identificados no exterior. Conforme o procurador da República Rafael Rayol, já foram identificados fósseis da Chapada do Araripe em países como Alemanha, França, Itália, Japão, Espanha e Estados Unidos. Atualmente, o MPF tem “de 10 a 12 processos que tratam de repatriação e apuração de responsabilidade”.

“Quando isso é descoberto, a gente instala procedimento com dois objetivos em especial: um é apurar os fatos, identificar como saiu, saber como chegou ao exterior e como foi o transcurso para tentar identificar os responsáveis; o outro é o pedido pela atividade de repatriação”, explica o procurador.

Em alguns países da Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, o comércio de fósseis não é ilegal e, muitas vezes, trazer esses materiais para o Brasil demanda tempo e requer cooperação internacional.

De acordo com o procurador Rafael Rayol, há mais de 1.500 peças apreendidas no exterior à disposição da Justiça e aguardam a decisão para que sejam repatriadas. O MPF acredita que os valores de fósseis de pterossauros, por exemplo, os mais valiosos da Chapada do Araripe, chegam a 150 mil dólares cada um na Europa. Peças similares já foram encontradas à venda no Brasil por R$ 10 mil.

Fósseis em bagagem de mão

De acordo com a delegada da Polícia Federal em Juazeiro do Norte, Josefa Lourenço, o tráfico mais profissional, que irriga comércios internacionais, é também “o mais difícil de se investigar”. Isso porque há pessoas que se especializam na área, sabendo como esconder os fósseis em pedras semipreciosas e despachá-los para fora. Segundo ela, os maiores interessados são pesquisadores brasileiros e do exterior.

Entre 2011 e 2020, A PF de Juazeiro instaurou 25 inquéritos para apurar o tráfico de fósseis da região da Chapada do Araripe. Contudo, eles não se restringem apenas à destinação internacional, uma vez que também há outro tipo do crime mais local.

“Havia um fluxo muito grande de turistas que não tinham conhecimento da lei, embora o desconhecimento não possa ser aplicado. Trabalhadores de pedreira ofereciam os fósseis, e eles eram encontrados na bagagem de mão em aeroportos. Esse tipo de comercialização irregular existe na região e tem diminuído, possivelmente por conta das duas últimas operações que fizemos”, analisa.

A lei que criminaliza o tráfico de fósseis determina pena de um a cinco anos de prisão, além de multa. No entanto, os casos podem ser agravados quando envolvem organização criminosa e têm relação com outros tipos de crime.

Como funciona a cadeia criminosa

As apurações já realizadas apontam que o tráfico de fósseis se inicia a partir de uma atividade legal: a extração de calcário laminado (uma pedra semipreciosa, também conhecida como pedra cariri). O material paleontológico está fixo nessas pedras. Durante a extração, algumas pessoas que atuam nas pedreiras percebem a presença do fóssil, iniciando a cadeia criminosa.

A lei afirma que qualquer fóssil encontrado no Brasil é um bem da União, e a extração deles deve ser informada à Agência Nacional de Mineração (ANM) que, em tese, fiscaliza o processo de extração em minas.

As espécies mais raras, porém, são ocultadas nessas pedras e enviadas por terra através de caminhões até portos brasileiros. No momento da fiscalização, em meio a toneladas de pedras cariri, o fóssil passa pelas autoridades alfandegárias após ser atestada nota fiscal como material semiprecioso.

Conforme o MPF, o principal local de saída para o mercado europeu é o Porto de Santos, em São Paulo. Na Europa, onde esse comércio é legal, os materiais cearenses servem de base para pesquisas científicas, coleções e leilões via internet.

Fonte: G1 CE

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