“Aqui temos pelo menos 20 idosos de idade avançada, alguns com mais de 100 anos", alerta o agricultor Assis Nicolau, vice-presidente da associação dos moradores. Foto: Antonio Rodrigues

14/11/2021

Na manhã do feriado do Dia do Trabalhador em 2014, José Francisco Feitosa resolveu fazer um serviço. Não como agricultor, profissão da vida toda. Mas como pedreiro. Ele decidiu, naquele dia, retirar os tijolos da parede de sua casa no Baixio das Palmeiras, um distrito de Crato, localizado na Chapada do Araripe.

José Francisco estava realizando a obra quando a estrutura cedeu sobre ele. José foi encontrado desacordado ao lado dos escombros. Apesar de ser socorrido, não resistiu aos ferimentos e morreu na noite do mesmo dia.

Casa de José Francisco Feitosa, após o desmoronamento. Foto: Arquivo pessoal

As residências do pacato Baixio das Palmeiras ficam à margem de uma estrada carroçal que liga o município à vizinha Barbalha. Nessas casas vivem um pouco mais de 300 famílias. Segundo o IBGE, eram 2.428 habitantes em 2010.

A tranquilidade do local, entretanto, foi abalada há quase 10 anos, ainda em 2012, quando homens e tratores cortaram cercas e invadiram as propriedades para fazer demarcações. Foi quando souberam que seriam afetados pelo Cinturão das Águas do Ceará (CAC) — maior obra hídrica do Estado.

Foto feita por um dos moradores em 2012, quando eles descobriram que a comunidade estava na rota do CAC. Foto: Arquivo pessoal

Organizados na Associação de Moradores do Baixio das Palmeiras, a comunidade buscou informações e tentou resistir. Conseguiu realizar audiências públicas, reuniões e um procedimento junto ao Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE). 

Mesmo assim, o projeto teve andamento, assim como os processos de desapropriação, dos quais alguns foram concluídos. Contudo, a demora e incertezas quando a quais serão os moradores indenizados, quanto de suas terras será desapropriado e o valor da indenização tem causado angústia a quem vive ali.

Quem conta a história da tragédia que levou à morte José Francisco Feitosa, naquele 1º de maio, dois anos depois dos tratores aparecerem, diz que o agricultor foi um dos primeiros indenizados no distrito, pois sua casa estava no traçado do canal do CAC.

Como o valor recebido não foi suficiente comprar outro terreno para construir um novo lar. “O que ele recebeu não dava para fazer tudo”, lembra seu vizinho, o agricultor Reginilton Ferreira Nobre, que o encontrou no dia do acidente.

As residências do pacato Baixio das Palmeiras ficam à margem de uma estrada carroçal que liga o município à vizinha Barbalha. Foto: Antonio Rodrigues

INDENIZAÇÕES
O projeto do Cinturão das Águas tramita nos arquivos da Secretaria de Recursos Hídricos do Estado (SRH) desde 2009. Em nota, o órgão disse que, ao todo, 77 imóveis, entre casas e terrenos, serão indenizados no distrito de Baixio das Palmeiras.

Destes, 48 já foram pagos, nove estão em processo de pagamento e 20 estão em processo de elaboração de projeto. O trecho do Lote 03, que atinge a localidade, está previsto ter início em 2022, mas não foi informado o mês.

O Cinturão das Águas do Ceará (CAC) é maior obra hídrica do Estado. Foto: Antonio Rodrigues

INQUIETAÇÕES E INSEGURANÇA
Após quase uma década, as obras do CAC ainda não chegaram ao distrito do Baixio das Palmeiras. Porém, as inquietações e inseguranças se mantêm latentes com a proximidade do empreendimento, que já está na comunidade vizinha de Barro Branco.

“Apareceram pessoas aqui tirando foto, mas sem falar nada”, conta Regivaldo Ferreira Nobre, irmão de Reginilton. Eles moram com mais dois irmãos, Ricardo e Francisco, em área que está no traçado do canal, mas ainda não foram desapropriados. Os quatro moram na mesma casa onde foram criados desde pequenos.

A mãe deles, Maria Ferreira, que faleceu no ano passado aos 75 anos por problemas cardíacos, temia que todos fossem retirados e não tivessem um local adequado para ficar. Esse temor carregou até seus últimos dias. “Ela estava muito nervosa e isso piorou”, acredita Reginilton, que se locomove com ajuda de muleta por problemas na coluna.

Com cerca de três tarefas de terra (cerca de 13 mil m²), os irmãos foram procurados por representantes da SRH para serem indenizados antes da chegada da pandemia da Covid-19, mas a família considerou o valor muito baixo.

A propriedade possui duas casas e, juntas, foram avaliadas em cerca de R$ 40 mil. O terreno ainda apresenta coqueiros, mangueiras, seriguelas, mamoeiro e uma cacimba que garante o abastecimento de água. Uma área similar custaria o triplo no distrito, aponta Regivaldo. 

“Sempre morei aqui e sair para outro canto é difícil. Falaram que tem uma parte do terreno que não vai pegar, mas não sabe onde é. Como vou saber onde construir?”, desabafa Regivaldo.

Regivaldo e Reginilton Ferreira Nobre moram com mais dois irmãos em área que está no traçado do canal, mas ainda não foram desapropriados. Foto: Antonio Rodrigues

ANGÚSTIA
Ainda sem ter uma sinalização do início da obra, o agricultor Assis Nicolau, vice-presidente da Associação Sagrada Família, da comunidade do Baixio do Muquém, uma das quatro do distrito, vê a proximidade da obra com preocupação.

“Aqui temos pelo menos 20 idosos de idade avançada, alguns com mais de 100 anos. Como vai ser a assistência a esse pessoal? Vai ter uso de explosivos? Estamos preocupados porque não temos acesso a nada. Tem que sentar e conversar”, sugere. 

A falta de comunicação é o grande entrave hoje, na avaliação de Assis: “O abastecimento de água, a iluminação, como vão ficar? Porque imagino que vai mexer com tudo isso”, completa.

Outra inquietação é em relação ao chamado olho d’água do Muquém, uma pequena nascente que pode ser destruída pelo CAC. “Ele é a história do nosso distrito, onde todo mundo era abastecido. Acredito que será exterminado e é o único na nossa história. A comunidade se criou em torno dele”, garante Assis. 

O professor e geógrafo Liro Nobre, morador do Baixio das Palmeiras, aponta que um dos pedidos pela comunidade é ter compensações ambientais no próprio distrito, já que o projeto hídrico irá destruir no seu trajeto, além de imóveis, mata preservada e riachos.

Inclusive, com apoio de pesquisadores da Universidade Regional do Cariri (Urca), os moradores farão uma cartografia social dos impactos da obra. “Vamos refazer o mapa do CAC em cima do nosso mapa, destacando a casa com o nome das pessoas, os riachos, o olho d’água, contrapondo esse mapa seco, sem vida, onde o nosso lugar é visto apenas como um traçado sem caminho”. 

INQUÉRITO
Desde as primeiras demarcações, os moradores do distrito do Baixio das Palmeiras provocaram o poder público e o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE). Disso, desde 2013 tramita um inquérito civil na Promotoria de Justiça do Crato, que começou com denúncias sobre o processo de desapropriação, ausência de informações e os danos ambientais. 

A partir daí, foi emitida uma recomendação à SRH para que sejam promovidas reuniões periódicas com as comunidades impactadas pelas as obras do CAC no distrito do Baixio das Palmeiras. Nelas, que fossem apresentados projetos básicos e executivos de forma que as informações sejam acessíveis aos moradores, esclarecendo as áreas que serão impactadas.

Isso não vem sendo cumprido, segundo a comunidade. “Precisamos saber quem, de fato, seriam os indenizados, discutir a compensação ambiental e manter um diálogo para minimizar esses impactos”, reforça Liro.

Segundo o promotor Thiago Marques Ribeiro, o processo continua aberto. “Estamos pendentes de oficiar a Secretaria de Meio Ambiente do Estado (Sema) para que apresente a comprovação de que foi feita a compensação ambiental", antecipa. 

Sobre outros pedidos, o promotor deve consultar novamente a comunidade. "Ainda saberemos se existe alguma demanda não solucionada que seja de nossa atribuição. Já as discussões sobre indenizações de eventuais desapropriações, por serem questões individuais patrimoniais, não são de nossa atribuição”, explica. 

Outra inquietação dos moradores é em relação ao chamado olho d’água do Muquém, uma pequena nascente que pode ser destruída pelo CAC. Foto: Antonio Rodrigues

CONTATO COM A COMUNIDADE
Sobre a alegação de falta de diálogo, a SRH afirmou que seus técnicos estão semanalmente no local em contato com a comunidade. “Uma reunião será marcada ainda em 2021 para que, com a presença de técnicos da Superintendência de Obras Hidráulicas - Sohidra, sejam passadas todas as informações de obras e esclarecimentos”, adiantou. 

Além disso, a secretaria reforçou que dentro do projeto há programas de educação ambiental e patrimonial que envolvem a comunidade, entre eles, a contratação de uma empresa de arqueologia e paleontologia que acompanha a obra. 

Já sobre as ações de compensação ambiental, o secretário de Recursos Hídricos do Estado, Francisco Teixeira, em ofício enviado à Promotoria de Justiça de Crato em julho deste ano, informou que realizou os pagamentos para o desenvolvimento das ações junto à Sema, conforme estabelece a legislação.

A Sema também informou, através da assessoria especial do gabinete, que entre as ações do programa de compensação ambiental do CAC, ocorreu a contratação de uma empresa para serviços de planejamento, produção, organização e realização de eventos de Educação Ambiental em Unidade de Conservação Estadual: Projeto Viva o Parque – Parque Estadual do Cocó.

Além disso, o recurso da compensação, que não foi detalhado pela Sema ou pela SRH, foi investido na gestão e manutenção de 23 unidades de conservação estaduais do Ceará, de acordo com as diretrizes do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), incluindo o Parque Estadual Sítio Fundão, em Crato. 

Isso acontece porque o recurso da compensação ambiental não é destinado para os municípios e nem para as comunidades atingidas pela obra, “considerando se tratar de receita, cuja aplicação e destinação é vinculada às Unidades de Conservação em observância aos dispositivos legais vigentes, quais sejam, Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC)”, detalhou, citando as leis de nº 9.982/2000 e 14.950/2011, que institui o Sistema Estadual de Unidades de Conservação (SEUC) e o Decreto 30.880/2012.

Fonte: Diário do Nordeste

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