Filhote de jaguarundi em cativeiro (Foto: Raquel Soares/ Arquivo Pessoal)

14/03/2022

Mesmo diante das melhores intenções, o erro pode acontecer. Um exemplo disso é quando animais silvestres são encontrados por pessoas pouco familiarizadas com os protocolos de resgate e, na ingenuidade, os levam para casa.

Acontece que, muitas vezes, estes bichos não estão em perigo e nem precisam ser resgatados. No caso de filhotes, é comum que a mãe saia para caçar e os deixe em tocas ou em algum local que considere seguro até a sua volta com o alimento. É comum que as pessoas encontrem estes animais e achem que eles estão abandonados, mas, se não for o caso, o resgate pode ser até mesmo maléfico.

A analista ambiental Rose Lilian Gasparini, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), explica que, quando filhotes são resgatados e postos em cativeiro antes de aprenderem a caçar com as suas mães, o processo natural de aprendizado é inviabilizado.

"Se o bicho é retirado da natureza muito novinho, é muito difícil retorná-lo à mata ou floresta. Ele acaba sendo condenado a viver o resto da vida em cativeiro. Temos consciência de que as pessoas não fazem por mal, mas acabam causando um problema para o bicho e para as instituições ambientais, que acabam recebendo muitos animais e não têm onde alojá-los", explica a analista, que trabalha para o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros, órgão integrante do ICMBio.

A situação de resgate indevido chamou a atenção da ONG BiodiverSe, localizada no município do Crato, no Cariri cearense. Um levantamento interno apontou que, de setembro de 2019 a julho de 2021, ao menos 8 filhotes de gatos silvestres foram resgatados na região da Chapada do Araripe. Seis deles eram filhotes de jaguarundis – uma espécie de felino silvestre que pode lembrar um gato doméstico.

Por acharem semelhantes ao bicho que criamos em casa, as pessoas costumam levar o filhote consigo e alimentá-lo com itens que não fazem parte de sua dieta, como o leite de vaca. Quando finalmente percebem que não se trata de um animal doméstico, acionam os órgãos ambientais.

Os jaguarundis cuidados na ONG BiodiverSe voltarão à natureza em torno de dois anos, se tudo ocorrer como planejado (Foto: Bodlina / Wikimedia Commons)

Reabilitação de jaguarundis no Ceará
Na Chapada do Araripe, a ONG BiodiverSe mantém a guarda temporária dos jaguarundis resgatados até que eles possam ser encaminhados para os Centros de Triagem e Reabilitação de Animais Silvestres (CETRAS), onde será verificado se o bicho pode retornar à natureza ou precisará ser mantido em cativeiro, sob cuidados específicos.

De acordo com a bióloga Raquel Soares, voluntária na ONG, são raras as vezes em que eles podem ser soltos. "Quando são resgatados ainda filhotes, eles ainda não aprenderam a caçar ou a fazer uma emboscada para poder atrair as presas para conseguir se alimentar e sobreviver contra predadores no ambiente natural", diz.

Muitas vezes, por terem ingerido leite bovino, podem chegar com infecções intestinais, demandando cuidados.

"Quando chegam aqui, a gente tenta fornecer esse cuidado mínimo para garantir a sua sobrevivência. Os primeiros dias são os mais difíceis. Um gato doméstico, por exemplo, quando acaba de ser amamentado, é lambido pela mãe para estimular a fazer xixi e cocô. O silvestre precisa desse estímulo, então, depois da alimentação, a gente deve passar um algodão úmido a cada 2 ou 3 horas para estimulá-los. Quando isso não acontece, precisamos dar algum medicamento para servir como estímulo, algo que seria natural se fosse feito pela mãe. E isso pode acabar lhe condenando ao cativeiro", explica Raquel.

A bióloga e sua equipe acabaram de obter a concessão de uma licença para iniciar um projeto de pesquisa que visa reabilitar estes animais para que eles possam voltar à natureza. A iniciativa é uma parceria entre a ONG BiodiverSe, o ICMBio, o curso de veterinária da Universidade Federal do Cariri e a clínica veterinária HarmonyVet.

Dois filhotes de jaguarundis – um macho e uma fêmea com 9 e 7 meses de idade – participarão da pesquisa. Até então, eles estavam em cativeiro em um recinto um pouco maior que 30 m². Mas a equipe agora se prepara para construir um ambiente de 135 m² que simula o seu habitat natural. O espaço, localizado em uma área de solo nu, conta com rochas que servirão como abrigo tanto para eles quanto para as presas que serão soltas ali: ratos, camundongos, periquitos australianos, porquinhos-da-índia, etc.

"Vamos soltar os animais nos ambientes, permitir tocas para eles e monitorar, por meio das câmeras, o comportamento dos gatos que estarão no recinto, adaptando de acordo com o que for necessário. Com o tempo, com os bichos soltos e com as presas naquele ambiente, espera-se que a gente consiga conceder para eles esta expertise que eles aprenderiam com a mãe e não tiveram a chance", conta Raquel.

Ela diz ainda que, caso eles não apresentem a capacidade de predar, como é esperado, a equipe deverá oferecer presas mortas como alimentação. Eles também estarão em constante monitoração quanto às condições de saúde parasitológicas e hematológicas.

Depois de um ano e meio de trabalho em um espaço controlado, prevê-se o processo de soltura dos bichos de forma gradual. Primeiro, eles serão colocados em um recinto menor, dentro da floresta, onde poderão ser avaliados quanto ao desempenho na natureza.

"Isso pode durar dias ou um mês. Forneceremos alimento naquele local e, depois da avaliação, abriremos o recinto para fazer a soltura. Precisamos ir lá diariamente oferecer a presa morta, porque, caso os jaguarundis não consigam se alimentar em outro lugar, eles poderão ter a possibilidade de voltar no recinto para conseguir alimento", diz a bióloga.

Ambos os animais estarão sendo monitorados com uma coleira de satélite que permite a visualização de sua distribuição na floresta. Após 6 meses de observação, o plano é tirar esta coleira e, a partir deste momento, haverá a confirmação de que o projeto de reabilitação obteve sucesso. Assim, ele poderá ser aplicado a outros animais (inclusive de outras espécies) nestas condições.

Jaguarundi, o felino selvagem diferentão
O jaguarundi, objeto de estudo do projeto de pesquisa, é também chamado de gato-mourisco. A nível mundial, o animal não costa na lista das espécies ameaçadas de extinção, mas, no Brasil, é considerada vulnerável.

"Ele é uma das espécies de felinos silvestres que mais são visualizadas em áreas vegetadas, mas isso não quer dizer que haja mais bichos. Acontece que a grande maioria dos felinos silvestres têm atividades noturnas, mas o jaguarundi tem hábitos diurnos e crepusculares, o que facilita a sua observação", explica Raquel.

A analista ambiental Rose Lilian Gasparini acrescenta: "É uma espécie muito afetada pelo desmatamento e perda dos habitats. Como anda de dia, é visualizado com mais facilidade do que outros gatos menores e pintados. Ele tem uma pelagem lisa cuja cor varia entre os tons de marrom".

O tom exato varia de acordo com o ambiente: no Ceará, por ser uma região mais árida, os bichos costumam apresentar uma cor mais avermelhada; já em São Paulo, é mais comum ver gatos-mouriscos de cor marrom acinzentada.

Os jaguarundis adultos podem chegar a uma média de 4 a 5 kg e possuem corpos bem alongados, o que lhes confere uma estética elegante. Apesar de terem a habilidade de subir em árvores, como outros felinos, esta espécie prefere predar no solo, onde encontra pequenos mamíferos, roedores, lagartos, anfíbios, aves – animais menores, de até 1 kg, no geral.

Como os gatos domésticos que são uma mistura com espécies silvestres, os gatos-mouriscos costumam ser ariscos. "A gente sempre pede muito cuidado ao manusear animais silvestres, porque mesmo com um felino doméstico, se ele for mais bravo, pode te arranhar, te morder… se a pessoa for mordida, é protocolo das unidades de saúde fazer as vacinas de prevenção à raiva, porque eles podem ser eventuais transmissores da doença", orienta Rose.

Não se trata, porém, de um animal que atacará seres humanos de forma deliberada. Arranhões e mordidas só acontecerão, segundo as profissionais, caso ele se sinta ameaçado e a pessoa tente pegá-lo no colo.

Fonte: Revista Casa e Jardim

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