A abolição da escravatura no Brasil é revista pela Mangueira, conferindo protagonismo a um cearense, o Chico da Matilde. FOTO: Oscar Liberal |
"Construir
uma narrativa na qual a representatividade popular possa gerar valores
associados ao patriotismo é importante para o momento que a gente vive.Olhar
para a história do Brasil com o interesse de construir uma narrativa que vai
exaltar índios, negros e pobres, neste momento específico da política nacional,
eu acho fundamental", observa o carnavalesco Leandro Vieira, responsável
pelo enredo da Mangueira desde 2016, quando estreou como campeão do Grupo
Especial com o desfile em homenagem a Maria Bethânia.
Para
ele, a ideia de que "somos brasileiros há cerca de 12.000 anos, mas
insistimos em ter pouco mais de 500" é um dos pilares fundamentais do novo
enredo. "Ao índio brasileiro, além de ser negado o protagonismo, foi
negada uma questão fundamental da preservação, que é a da memória", alerta
Leandro. E é nesse sentido que os indígenas cearenses ganham relevo no desfile.
Isso porque uma das alas da Mangueira será dedicada à Confederação dos Cariris.
Ornamentos que remetem aos povos indígenas brasileiros estão no barracão da Mangueira. FOTO: Oscar Liberal |
Movimento
de resistência à dominação portuguesa que ocorreu entre 1683 e 1713 e que
também ficou conhecido como Guerra dos Bárbaros, a confederação se estendeu
pelos territórios do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba e, na ótica de
Leandro "foi uma das guerras mais importantes, com uma das maiores representações
do indígena brasileiro como combatente".
"Para
se ter noção da articulação desses índios, as tropas que combatiam e tentavam
exterminar o Quilombo de Palmares, que é superfamoso no imaginário brasileiro,
foram desviadas das lutas e da guerra à população quilombola para combater o
levante indígena cariri. Essa é uma passagem que quase ninguém conhece e é
importante ser divulgada", destaca.
O
embasamento teórico para conceituar o desfile, Leandro tirou de artigos,
livros, teses e conversas com professores universitários. "Sempre fui
amigo dos meus professores de História; sempre gostei de ser íntimo do
conhecimento histórico. Então (o enredo) nasce disso, desse acúmulo de
material", observa ele, já tendo declarado em outras entrevistas que a Mangueira
desfilará com resposta crítica ao projeto "Escola Sem Partido".
Chico
da Matilde
Além
da "cara de Cariri", a escola contará com uma alegoria toda dedicada
a Francisco José do Nascimento, o Chico da Matilde, também conhecido como
Dragão do Mar. O jangadeiro que liderou o Movimento Abolicionista no Ceará,
pioneiro no País, recusando-se a transportar para os navios negreiros os
escravos vendidos para o Sul, é um dos personagens que mais chamaram a atenção
de Leandro.
“Ele
está intimamente ligado à questão da abolição da escravidão no Brasil e ao
mesmo tempo o conhecimento da existência dele e da sua luta é nulo em relação
ao que é dado à Princesa Isabel. Dentro da minha cabeça, isso se dá pelo fato
de estarmos falando de um personagem eminentemente popular, e a narrativa
oficial nunca concedeu protagonismo a personagens ou representantes
eminentemente populares", reforça.
O
próprio carnavalesco se questiona por ter passado 30 anos sem saber dessa
versão da História. Ele só tomou conhecimento da resistência e bravura de Chico
da Matilde quando esteve no Ceará, há cinco anos. "Isso é muito tarde,
ainda mais para um país eminentemente negro, onde as questões negras ainda
estão sendo debatidas", avalia.
Depois
dos cariris e do Dragão do Mar, o Ceará é lembrado ainda por um
"anti-herói" no enredo da Mangueira: o General Castelo Branco. No
texto de apresentação, a crítica é feita à rodovia que "corta" São
Paulo com "nome de batismo" em homenagem ao primeiro general "do
Golpe 1964". Uma menção aos "Anos de Chumbo" está igualmente
prevista para o desfile na madrugada da terça-feira, dia 5 de fevereiro.
"História
para ninar gente grande é essa que nos foi contada, essa narrativa quer nos
adormecer", arremata Leandro. Salve os caboclos de julho/Quem foi de aço
nos anos de chumbo/ Brasil, chegou a vez/ De ouvir as Marias, Mahins,
Marielles, malês - dizem no samba. Em 2019, afinal, a Mangueira canta para nos
despertar. (Diário do Nordeste)
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