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FOTO: ANTÔNIO RODRIGUES |
O Decreto Lei Nº 4.146, de 1942,
determina que os fósseis são propriedade da União. Ao contrário de alguns
países, como Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido, a compra e venda desses
achados, no Brasil, são proibidas. Sua extração depende da autorização prévia
da Agência Nacional de Mineração - antigo Departamento Nacional de Produção
Mineral (DNPM). A pena para quem comercializa as peças varia de um a cinco anos
de prisão.
Compra
A equipe de reportagem do Sistema Verdes
Mares foi até os municípios de Nova Olinda e Santana do Cariri. Nas duas
cidades há cerca de 92 frentes de exploração de calcário laminado, onde é
encontrada a maioria dos fósseis da região.
Nesses locais, é fácil ter uma ideia do
que pode ser a ponta do iceberg de um problema histórico: o tráfico destas
peças. A facilidade para comprar um exemplar é nítida.
Apresentando-se como turistas, membros
da equipe de reportagem foram até alguns pontos onde são encontrados, com mais
facilidade, os fósseis. Em uma das minas de exploração foi possível comprar um
fóssil de Dastilbe crandalli, peixe de água doce que viveu entre 96 a 113 milhões
de anos (cretáceo inferior), por apenas R$ 20. A compra rendeu ainda o brinde
de um exemplar de um Heteroptera (barata d'água).
Em Santana do Cariri, a reportagem
flagrou um homem que mostrou em seu piso o que seria um osso de dinossauro.
"Isso aqui é uma junta. Continua em outra pedra", explicou. Morador
da localidade, ele demonstrou conhecimento acerca da ilegalidade nos negócios
feitos por meio da venda de fósseis. "Se tirar uma pedra daqui e
comercializar, você vai se encrencar", alertou.
Na CE-166, que liga Santana do Cariri a
Nova Olinda, há várias minas de exploração de calcário laminado. Antes de
chegar a uma delas, a equipe abordou um morador:
- É fácil comprar? - perguntamos.
- É e não é. Essa "pedra" é
encontrada direto por aí, mas é fiscalizada pela Polícia Federal. O pessoal
quando acha, fica em sigilo.
- Então é ilegal vender? - indagamos.
- É porque assim, dizem que é uma coisa
da natureza. Os funcionários (das minas) quando encontram, ficam todos
caladinhos. Passam um 'fio' para um cara aí, ele vem, bota tanto (valor), outro
bota tanto, e a acabam levando. É proibido vender. É caro, dependendo da peça.
Se achar um osso. Muitas vezes o cara encontra jacaré, pterossauro. Ah, meu
amigo, teve cara aí que ficou milionário e sumiu do dia pra noite - confirma o
morador.
Mais à frente, na chamada Mina de
Idemar, a equipe se identificou, mais uma vez, como turistas que queriam levar
uma "lembrança" para casa e indagou se havia alguma "pedra"
- como costumam chamar os moradores - disponível. Rapidamente, com poucos
questionamentos, um funcionário da mina interrompeu o seu almoço e disse:
- Peixe? Tem. Aqui mesmo tem um - falou,
apontando para o piso.
Depois, se retirou até uma outra sala,
na área interna.
- Vou pegar peixe pra vocês. Senta aí.
Fica à vontade - completou.
Em seguida, o funcionário acompanhou a
equipe até outra sala, onde havia diversos armários. Assim que todos entraram,
o homem apontou para um fóssil e explicou:
- Isso aqui não é meu não. Agora, isso
aqui é raro. Os pesquisadores quando veem, ficam loucos. Um vegetal, de ano em
ano, você encontra um. Trabalho aqui há 10 anos. Faz tempo que vi desse aqui -
conta, após mostrar um peixe em suas mãos.
- Podemos pegar? - perguntamos.
- Pode. Pode levar esse peixe aqui. E
vocês podem ver que tem um peixe aqui também. Tem que esculpir com as
ferramentas - explica, apresentando outra pedra.
- Demora para preparar isso aqui? -
continuamos.
- Uma meia hora. Quer levar ele? -
ofereceu o funcionário da mina.
Depois
da recusa, ele mostrou a pedra com o que acreditava ser uma borboleta. Em
seguida, orientou que as peças fossem molhadas para os fósseis ficarem mais
visíveis.
- Muito raro encontrar um (peixe)
desses. Olha o osso. A pedra também é resistente - disse como quem faz uma
propaganda.
- E como a gente faz? - questionamos.
- Você me dá um agrado. Vinte conto
mesmo - disse o funcionário.
Em seguida, entregou outra peça
identificada como barata d'água.
- Esse aí pode levar. E se quiser mais
peixe, eu consigo - garantiu o vendedor, antes de se despedir.
Após a aquisição dos fósseis, a equipe
do Sistema Verdes Mares entregou o material colhido em Nova Olinda ao
Laboratório de Paleontologia da Universidade Regional do Cariri (Urca). O
paleontólogo Álamo Feitosa identificou os animais e entregou um termo de
recebimento.
Ao longo das últimas três semanas, a
equipe de reportagem também tentou contato, por telefone, com a Delegacia da
Polícia Federal em Juazeiro do Norte.
Questionamentos foram enviados por
e-mail, e um repórter foi à própria Delegacia, mas não conseguiu falar com a
delegada Josefa Maria Lourenço que, por meio dos secretários, afirmou
"estar muito ocupada".
Importância
histórica
A Bacia do Araripe se tornou um dos
principais alvos do tráfico de fósseis no mundo, por causa da preservação do
material. "Houve coincidências geológicas e ambientais que preservaram os
fósseis, mantendo as partes moles, mais delicadas, como músculo, pele, conteúdo
estomacal, parasitos", explica Álamo Feitosa.
No local, podem ser encontrados diversas
espécies de insetos, moluscos, grupos de plantas, peixes, anfíbios, tartarugas,
lagartos, dinossauros, pterossauros, crocodilos, aves e pequenos mamíferos.
"Os fósseis aqui são usados como modelo para o mundo todo", completa
Álamo.
De acordo com o paleontólogo, o
transporte destas peças para o exterior é antigo. Em 1800 já há registros
feitos pelo naturalista João da Silva Feijó, que veio ao Cariri a mando da
Coroa Portuguesa, para relatar a singularidade dos fósseis. À época, enviou
duas coleções ao Rei de Portugal.
Só a partir do último século, na década
de 1940, que o material coletado começou a ser depositado no antigo DNPM.
Porém, nos anos de 1960, Santana do Cariri tinha feiras livres de fósseis
vendidos nas calçadas e praças, e enviados para São Paulo.
"A ponte era Santana do Cariri,
Juazeiro do Norte, São Paulo e exterior. Assim saíram muitos pterossauros,
dinossauros, peixes, tartarugas para a Europa, os Estados Unidos e o
Japão", conta Álamo.
Com a criação do Museu de Paleontologia
em Santana do Cariri, nos anos 1980, pelo professor Plácido Cidade Nuvens,
posteriormente cedido à Urca, foi que começou a se investir em pesquisa em
Paleontologia. Nos anos 1990, criou-se o laboratório deste mesmo setor e o
núcleo de pesquisa na Instituição que, a partir de então, ficou responsável
pela descrição de dezenas de espécies descobertas no Cariri.
Prisões
Apesar de ter sido mais comum nas
décadas de 1980 e 1990, o tráfico de fósseis ainda acontece na região. De 2012
a 2017, a Delegacia Federal de Juazeiro do Norte apreendeu 111 fósseis,
prendeu/indiciou 19 pessoas e abriu 13 inquéritos.
Em outubro de 2013, a Polícia Militar
deteve um caminhão carregado com 27 peças em Pedreira (SP). O veículo teria
sido carregado em Nova Olinda e aguardava o destino final. Antes disso, o
motorista confessou aos agentes de segurança que já havia feito outras entregas
deste tipo, mas com destino a Curvelo (MG).
Já em 2014, uma operação da Polícia
Federal de Minas Gerais recolheu quase 2 mil peças da região do Cariri com uma
quadrilha internacional. Entre o material, estava um esqueleto completo de
pterossauro, que se encontra na Universidade de São Paulo (USP).
Ao todo, 13 pessoas estariam envolvidas,
sendo oito brasileiros, três alemães e dois franceses. Dentre eles, estava o
alemão Michael Schwickert, conhecido da Polícia Federal. Ele já foi indiciado
três vezes por tráfico de fósseis no Brasil. A carga apreendida iria, dentro de
contêineres, para os Estados Unidos pelo Porto de Santos (SP), de onde parte a
maioria das peças. (Diário do
Nordeste)
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