Danos à flora são um dos tipos mais comuns de infrações e crimes ambientais. Foto: Fabiane de Paula

De cenários da ficção aos efeitos do dia a dia, os impactos do desrespeito do ser humano à natureza são evidentes. E vão além. Mesmo punidos por infrações, as ignoram. No Ceará, desde 1988, quase R$ 850 mil em multas ambientais prescreveram sem pagamento.

Os dados são de sanções aplicadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e foram obtidos pela agência de dados Fiquem Sabendo, especializada no acesso a informações públicas por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).

107 multas aplicadas a pessoas físicas e empresas cearenses em 30 anos não foram pagas e prescreveram.
 
A primeira multa ambiental registrada no levantamento foi aplicada em junho de 1988, por danos à flora, no município de Icó. A infratora foi uma empresa madeireira, que não pagou a multa no valor de R$ 76,78. A punição prescreveu em 2001.

Já a multa de maior valor, R$ 100 mil, foi aplicada em fevereiro de 2001 a uma pessoa física, no município de Fortim, no litoral leste cearense. No sistema do Ibama, a infração é especificada apenas como dano ao “controle ambiental” – e prescreveu em 2014.

Em quanto tempo uma multa ambiental prescreve?
Para extinção das multas não pagas, o Ibama considera a Lei nº 9.873/1999, segundo a qual “prescreve em 5 anos a ação punitiva da Administração Pública Federal (...), contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado”.

Também “cai” na prescrição um procedimento paralisado por mais de 3 anos, “pendente de julgamento ou despacho”. A lei acrescenta que quando a infração também constituir crime, a prescrição será determinada pela lei penal.

5 multas prescreveram em janeiro e fevereiro de 2022, de infrações cometidas entre 1996 e 2013, no Ceará.

Pelo menos 15 multas inseridas no levantamento prescreveram com menos de 5 anos desde a infração ambiental; e 3 delas, com menos de 3 anos, períodos previstos em lei.

O advogado João Alfredo Telles, presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB Ceará, ressalta que “além de aplicar a multa, o órgão precisa executá-la”. “Se a pessoa não paga, é preciso que seja feita a cobrança, por meio do setor jurídico”, explica.

Ele pontua que, “em tese, a impunidade pode ter decorrido de uma prevaricação, quando o servidor público deixa de cumprir as obrigações legais. Não tem sentido ter uma sanção se ela não for executada. E se não foi, alguém é responsável por isso.”

A impunidade gera uma consequência: estou dizendo para o degradador e para os demais que podem continuar destruindo. É um sinal terrível de que, na área ambiental, o crime compensa.
JOÃO ALFREDO TELLES
Pres. da Comissão de Direito Ambiental da OAB/CE

Ibama não justifica prescrições
O Diário do Nordeste questionou o Ibama, na segunda-feira (18), sobre quais os perfis dos infratores e os impactos da não execução das multas. O órgão confirmou o recebimento da solicitação, mas não enviou resposta até esta publicação.

O Ministério Público Federal (MPF) também foi questionado pela reportagem sobre o assunto, nessa quarta-feira (20), mas não houve retorno.

Empresas veem brechas em punições
Flávio Nascimento, professor de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisador de recursos ambientais, pontua que as infrações mais frequentes variam de acordo com o tipo de ambiente.

Litoral: crimes mais comuns têm a ver com desmonte de dunas e retirada de material para mineração, além de ocupação indevida do solo, como faixas de praia;
Sertão: é o desmatamento, degradação dos solos, afetando direta e indiretamente os rios, mexendo na mata ciliar;
Serras: são duas infrações comuns – desmatamento e uso e ocupação do solo indevidos.
O especialista menciona, ainda, que outra infração muito recorrente, independentemente da região, “é o barramento indevido de rios, muito prejudicial principalmente porque nosso estado é muito seco”.

O impacto ambiental da impunidade provocada pelas prescrições das multas, como avalia Flávio, é severo, sobretudo num estado onde “há uma degradação generalizada dos recursos naturais, em todas as regiões”.

À medida em que não há o pagamento dessas multas, há uma colaboração para que as pessoas e empresas percebam que a capacidade punitiva ambiental do Estado não é efetiva. Muitas já sabem disso e fazem. Isso é danoso.
FLÁVIO NASCIMENTO
Geógrafo, pesquisador e professor da UFC

Para Flávio, um dos fatores cruciais para essa lacuna na punição de infratores ambientais é o “sucateamento do Ibama, recorrente desde 2018”. “Um crime ambiental prescreve em 3 anos se não tramitar. Sucateado, o órgão perde a capacidade de atuar”, lamenta o pesquisador.

A inserção da pauta ambiental nas agendas política e social, com ampliação das áreas de proteção, por exemplo, também é apontada pelo geógrafo como “fundamental” para tirar do Ceará o status de um dos estados mais agressores ao meio ambiente.

“A pauta ambiental deve ser necessidade primeira. Muitos problemas de saúde pública estão ligados à nossa relação com o meio ambiente, como arboviroses, aquecimento do clima, falta de água. As pessoas precisam ver isso”, finaliza.

Quais são os tipos de infração ambiental?
A Lei de Crimes Ambientais (nº 9.605/1998) classifica as infrações em 5 grupos: 

CRIMES CONTRA A FAUNA
matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização;
exportar peles e couros de anfíbios e répteis em bruto, sem a permissão da autoridade ambiental competente;
introduzir espécime animal no País, sem parecer técnico oficial favorável e licença;
pescar em local ou período proibido;
impedir a procriação da fauna;
danificar ou destruir ninho, abrigo ou criadouro natural;
vender, expor à venda, exportar ou adquirir ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela oriundos, provenientes de criadouros não autorizados.

CRIMES CONTRA A FLORA
destruir ou danificar vegetação primária ou secundária, em estágio avançado ou médio de regeneração, do Bioma Mata Atlântica; ou cortar árvores em floresta considerada de preservação permanente;
causar dano às Unidades de Conservação;
provocar incêndio em mata ou floresta;
extrair de florestas de domínio público ou consideradas de preservação permanente pedra, areia, cal ou qualquer espécie de minerais;
cortar ou transformar em carvão madeira de lei;
adquirir, para fins comerciais ou industriais, madeira, lenha, carvão e outros produtos de origem vegetal, sem exigir a exibição de licença do vendedor, outorgada pela autoridade competente, e sem munir-se da via que deverá acompanhar o produto até final beneficiamento.

CRIMES DE POLUIÇÃO
causar poluição atmosférica que provoque a retirada dos habitantes das áreas afetadas, ou que, cause danos diretos à saúde da população;
causar a poluição hídrica que torne necessária a interrupção do abastecimento público de água de uma comunidade;
lançar resíduos sólidos em local inadequado;:
produzir, processar, embalar, importar, exportar, comercializar, fornecer, transportar, armazenar produto ou resíduos perigosos ou nocivos à saúde humana ou ao meio ambiente, sem seguir as recomendações dos regulamentos ambientais.
manipular, acondicionar, armazenar, coletar, transportar, reutilizar, reciclar ou dar destinação final a resíduos perigosos de forma irregular.

CRIMES CONTRA O ORDENAMENTO URBANO E O PATRIMÔNIO CULTURAL
destruir, inutilizar ou deteriorar bens protegido por lei, arquivos, registros, museus, bibliotecas, pinacotecas e instalações científicas;
alterar o aspecto ou estrutura de edificação sem autorização, em razão de seu valor paisagístico, ecológico, turístico, artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental.

CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO AMBIENTAL
sonegar informações ou dados técnico-científicos em procedimentos de autorização ou de licenciamento ambiental;
dificultar a ação fiscalizadora do Poder Público no trato de questões ambientais;
elaborar ou apresentar, no licenciamento, concessão florestal ou qualquer outro procedimento administrativo, estudo, laudo ou relatório ambiental falso ou enganoso.

Fonte: Diário do Nordeste

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