Quando uma língua morre, um mundo possível morre com ela" - alertou-nos certa vez o crítico literário franco-americano George Steiner. Diante desse parâmetro, o incêndio que reduziu a pó o acervo de línguas indígenas do Museu Nacional do Rio de Janeiro - incluindo gravações desde 1958 e cantos em muitas línguas sem falantes vivos - levou consigo muito mais do que palavras. O fogo que se alastrou pelo prédio da Quinta da Boa Vista dizimou (pela segunda vez) a memória dos povos originários do Brasil, e também algumas possibilidades - agora mais remotas - de reconstrução.

Registros daqueles que viveram no Nordeste brasileiro - inclusive no Ceará - também se perderam na tragédia, queimando-se, portanto, uma ponte que ligava o presente ao passado. É o que conta o cearense Evandro Bonfim, graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará, mas vinculado como pesquisador colaborador do Setor de Linguística/Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ.

"O que eu sei que tinha lá e que envolvia o Nordeste era a famosa 'Expedição das Borboletas', que D. Pedro II encomendou para ser feita do Rio de Janeiro ao Ceará, e que foi coletando também palavras tupiniquim", lembra. "Mas não se tem ideia do que é todo esse material. São 200 anos de história e eram poucos pesquisadores - cinco professoras e eu no setor de Linguística - até para se ter dimensão de tudo aquilo que a gente tinha. É um pedaço da história do Brasil que ninguém sequer conhecia", observa, ressaltando que parte desse material está sob domínio público.

O fato é que por aqui não se tem conhecimento de nenhuma etnia (das 14 registradas) que fale uma língua nativa e os motivos para isso podem ser compreendidos historicamente, conforme aponta Evandro. "O Ceará declarou que não existia povos indígenas em seu território ainda no século XIX, então os registros mais antigos são de missionários, e não de viajantes, exploradores, como os que abrigava o Museu Nacional".

Memória linguística
Na Universidade Estadual do Ceará (UECE), o professor da Pós-Graduação em Linguística Aplicada (POSLA), Expedito Ximenes, vem se dedicando nos últimos 20 anos a coletar documentos manuscritos que ajudam a contar a história de nosso estado. Em seu pós-doutorado em Filologia de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (2017), Expedito estudou a "Relação do Maranhão", o primeiro documento escrito sobre o Ceará antes do processo de colonização.

Escrita entre janeiro de 1607 e fevereiro de 1608 pelo Padre Luís Figueira - um jesuíta, que veio a mando da Coroa Portuguesa e da Companhia de Jesus, ao lado do também padre Francisco Pinto - "a Relação do Maranhão é o primeiro registro que a gente tem de índio aqui", conta Expedito.

"Naquela época não havia tribos organizadas, porque anterior aos jesuítas, o Pero Coelho de Souza tinha vindo ao Ceará e havia levado vários índios pra vender como escravos. Os nativos estavam fugindo, com medo de qualquer pessoa que aparecesse", observa. O texto, que em 1903 foi publicado datiloscrito por Barão do Studart na Revista do Instituto do Ceará, chegou por aqui manuscrito há cerca de cinco anos apenas.

"Meu colega Carlos Carvalho, professor da UECE, conseguiu a cópia desse manuscrito em Roma, no Museu dos Jesuítas", conta Expedito.

Na Relação, porém, tampouco há registro da língua nativa das comunidades indígenas aqui existentes naquele período. "O que ficou foi o relacionamento dos índios com a natureza, com os outros, com a tribo, com o estrangeiro que chegava, mas essa língua deles, essa coisa mais efetiva, mais concreta, perdeu-se".

Entraves
Expedito recorda ainda a interferência dos decretos de Marquês de Pombal nesse processo. "Ele exatamente oficializou a língua portuguesa, porque antes se falava a língua geral - uma mistura do português com tupi", conta.

No Ceará, o léxico indígena ficou mais presente na nomeação de lugares (Toponímia), e mesmo isso também chegou a ser proibido pelo Marquês de Pombal. Hoje, uma estudante de mestrado em Quixadá, pesquisa a toponímia indígena em cidades do sertão central. Mas o professor Expedito reconhece que ainda se faz pouco.

"Levados pelo discurso de que aqui não existia índio, a gente acabou assumindo essa ideia. É uma grande lacuna que temos. A gente não faz esse tipo de estudo e a universidade precisa atentar para isso", conclui.  (Diário do Nordeste)

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